Em um dos centros históricos mais visitados de Minas Gerais, a acessibilidade atitudinal é a primeira ação para o cumprimento do Estatuto da Pessoa com Deficiência
Por Larissa Fonseca, Luciana Cristine e Matheus Victor
Ouro Preto é Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade reconhecido pela Unesco | Foto • Matheus Victor
Passear pelo Centro Histórico de Ouro Preto é uma experiência que nos permite explorar todos nossos sentidos. Ao subir ladeiras íngremes e escorregadias, nos surpreendemos ao ver as igrejas e os casarões com suas arquiteturas únicas no caminho, enquanto ouvimos músicas tocadas nos barzinhos da região e, vira e mexe, um idioma que difere do nosso. Ficamos com água na boca ao sentir o aroma das comidas típicas feitas pelos restaurantes, que depois de um dia visitando pontos turísticos e comprando lembrancinhas de pedra-sabão, certamente serão o destino para experimentar a comida mineira.
Por ser o que é e por permitir essa experiência única a cada um que passa por ali, a cidade se tornou Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em 1980. Claro que nada disso seria possível sem uma boa recepção. Um bom filho à casa torna se as portas estiverem abertas, e sabemos que Minas Gerais não sai perdendo nisso, muito pelo contrário, é conhecida por sua hospitalidade e acolhimento.
Mas, será que todas as pessoas se sentem assim na terra dos Inconfidentes? Pessoas com deficiência física, auditiva, visual, intelectual e psicossocial que vivem na cidade ou que a visitam não encontram as portas abertas, tendo em vista que possuem suas experiências comprometidas ao lidarem com a falta de acessibilidade na maior parte dos espaços culturais de Ouro Preto.
Pelas ruas e pelos museus da histórica Ouro Preto, observa-se os empecilhos que dificultam a locomoção de pessoas com
mobilidade reduzida | Foto • Matheus Victor
Para quem já teve a chance de passar pelas ruas de pedras da cidade colonial, dois fatos são inegáveis: você vai precisar subir alguma ladeira e também vai encontrar alguém que fale outra língua. As calçadas estreitas e irregulares da região dificultam o ir e vir de moradores e visitantes, e os guias, sempre muito receptivos, nos abordam em português, inglês ou espanhol, mas poucos, ou quase nenhum, sabem o básico da Libras, a língua brasileira de sinais. Parecem detalhes, mas esses são fatos que fazem uma diferença enorme para muita gente.
Segundo o Censo Demográfico realizado pelo IBGE, em 2010, Ouro Preto tinha uma população de pouco mais de 70 mil habitantes, e desse total, quase um quarto possuía alguma deficiência. Como alguns profissionais questionam a metodologia utilizada neste Censo, é importante fazer alguns recortes.
Temos, então, que 1.942 responderam ter grande dificuldade visual ou que não conseguiam enxergar de modo algum; 1.738 tinham grande dificuldade motora ou não conseguiam se mover de modo algum; e 734 tinham grande dificuldade auditiva ou não conseguiam ouvir de modo algum. Além disso, mais de 12 mil pessoas disseram ter alguma dificuldade ao responder esses quesitos enquanto outras 756 declararam ter deficiência mental ou intelectual.
As questões de acessibilidade e mobilidade urbana já foram pauta no Lampião aqui e aqui, mas, no que diz respeito ao acesso à cultura, o tema ainda parece ser invisível. Segundo a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, todo brasileiro com deficiência tem direito à cultura, sendo-lhe garantido o acesso a bens culturais em formato acessível e a monumentos e locais de importância cultural e a espaços que ofereçam serviços ou eventos culturais e esportivos.
Quando falamos de acessibilidade, precisamos entender que ela vai além do acesso. Recursos como rampas, elevadores, chão tátil, banheiros e bebedouros adaptados são essenciais, mas também é necessário pensar na disposição dos móveis e altura de objetos para observação. É importante que existam pessoas capacitadas a prestar qualquer tipo de suporte, assim como saibam se comunicar em Libras. Além disso, é necessário que seja disponibilizado material em braile e sempre que possível permitir que objetos em exposição sejam tocados.
Artigo retirado da Lei nº 13.146/2015
O Estatuto da Pessoa com Deficiência também é claro quanto aos espaços ao afirmar que a construção, a reforma, a ampliação ou a mudança de uso de edificações abertas ao público, de uso público ou privadas de uso coletivo deverão ser executadas de modo a serem acessíveis. Além disso, as edificações públicas e privadas de uso coletivo já existentes devem garantir acessibilidade à pessoa com deficiência em todas as suas dependências e serviços, tendo como referência as normas de acessibilidade vigentes.
Fizemos, então, um mapeamento dos museus de Ouro Preto para descobrir se a Lei nº 13.146/2015 está sendo cumprida. O levantamento apontou que dos 14 museus analisados, nenhum deles é totalmente acessível. O acesso ao Museu Casa dos Contos, por exemplo, pode ficar limitado, pois além de não ser um espaço pensado para ser acessível, a maior parte do acervo fica localizada no segundo andar do prédio, acessado apenas pelas escadas. Caso parecido ocorre no Museu de Arte Sacra, que fica no subsolo da Basílica Matriz de Nossa Senhora do Pilar, cujo único acesso é uma escada estreita e íngreme. O mesmo acontece no Museu do Oratório, que apesar de possuir audioguia e marcações táteis no chão, só possui acesso por escadas.
Entre os bons exemplos estão o Museu da Inconfidência que possui elevador, rampas e cadeira de rodas à disposição dos visitantes, assim como banheiros acessíveis. O Museu Boulieu também possui seu espaço físico integralmente acessível e realiza oficinas dentro do conceito de educação universal, além de produzir conteúdos para que visitantes que não conseguem acessar o espaço físico possam fazê-lo de modo virtual. Já o Museu do Chá de Ouro Preto, apesar de não ter sido planejado de modo inclusivo, possui um espaço físico acessível.
Em consulta ao site da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Ouro Preto, dos 69 guias que possuem o Cadastro de Prestadores de Serviços Turísticos (Cadastur), do Ministério do Turismo, nenhum apresenta capacitação em Libras. Perguntada sobre a possibilidade de capacitar os guias da cidade para promover essa inclusão, a secretaria respondeu que já aconteceram algumas capacitações pontuais mas que realmente seria necessário investir em uma maior periodicidade desses treinamentos.
O diretor do Museu da Inconfidência, Alex Calheiros, também reconhece a necessidade de ações de inclusão referentes às exposições: “É o nosso maior desafio. As normativas são relativamente recentes e possuem uma maior abrangência da compreensão do que é acessibilidade. Quando a última reforma do museu foi realizada, a pauta focava muito na acessibilidade física e boa parte das exigências neste ponto foram atendidas.” explica.
Apesar disso, ele ressalta a dificuldade em conciliar as soluções de acessibilidade com as leis sobre modificação dos espaços tombados, visto que a maior parte dos museus da cidade se encontram em prédios tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e todas as alterações precisam ser aprovadas pelo órgão.
Já a coordenadora pedagógica do Museu Boulieu, Nathalia Santos, reforça que um dos maiores desafios aos museus para realização de um plano mais acessível é a pouca atenção governamental que esses recebem, além da escassez de recursos. Apesar disso, sua fala reforça o compromisso que as instituições devem ter: “O Museu Boulieu se compromete com a acessibilidade não apenas no âmbito de acesso físico, mas também no acesso à informação, eventos e atividades que o museu proporciona.”
Como prova disso, Nathalia conta que o museu está sendo reestruturado para o segundo semestre deste ano e fez a contratação de uma empresa especializada para garantir a seus visitantes uma experiência com audioguia, audiodescrição e contato com a expografia por meio da Língua Brasileira de Sinais, além de estarem proporcionando treinamento especializado em acessibilidade para toda a equipe.
Na vida real
Obstáculos e degraus fazem parte da vida, mas eles não deveriam ser literais. Para falar de sua experiência como pessoa com deficiência em espaços culturais, o presidente da Associação Comunitária dos Deficientes de Ouro Preto (ACODOP), Júlio Gonçalves, apresenta o conceito de acessibilidade atitudinal, que diz respeito a um comportamento sem preconceitos, estereótipos e discriminações. Mas, infelizmente, segundo ele, os espaços de Ouro Preto possuem uma deficiência atitudinal muito grande porque na maioria das vezes os funcionários sequer sabem a maneira correta de abordar as pessoas com deficiência. Júlio é uma pessoa com deficiência visual e diz se sentir limitado porque percebe a impaciência das pessoas ao receberem alguém com deficiência:
Júlio também diz sentir falta de mais alternativas de inclusão, como o uso de réplicas que possam ser tocadas por deficientes visuais. “Porque não adianta muito a gente ter acesso ao prédio, ao imóvel, e não poder tocar nada. Audiodescrição ou audioguia ajudam a compreender, mas essa questão tátil também é muito importante, você poder tocar é fundamental”, argumenta.
A jornalista Cíntia Soares também fala sobre a acessibilidade atitudinal porque, segundo ela, enquanto não enxergamos o outro como cidadão, não nos importamos com a inclusão. Portanto, a partir do momento que você pensa no outro, você consegue modificar as estruturas.
“Uma coisa que eu sempre falo, porque a cidade é histórica, turística, eles falam que ela é pra todo mundo. Visite, viva! Mas até que ponto a gente pode viver ela? Porque assim não adianta o Iphan fazer um vídeo dizendo’ visite a nossa cidade’ e ao mesmo tempo ter um espaço com degrau que não entra uma pessoa com cadeira de rodas, ou tem um espaço onde uma pessoa com deficiência visual ou deficiência auditiva não vai vivenciar aquele espaço por completo”, alerta.
Pela primeira vez na vida, Cíntia visita um museu. Neste dia, ela ganhou como presente de aniversário uma visita
ao Museu Boulieu | Foto • Matheus Victor
A jornalista também contou que só recentemente conseguiu conhecer alguns museus da cidade. Ela ganhou de presente dos amigos uma visita ao Museu Boulieu e ficou muito contente com as possibilidades de acessibilidade. Já no Museu da Inconfidência, ela foi apenas a trabalho e não conseguiu conhecer todo o acervo.
“Aí eu pergunto pra você: até onde vai a importância histórica? Para a inclusão, para a diversidade, não tem contexto histórico, né? A gente tem que preservar o nosso patrimônio, nossa história. Mas quem vai vivenciar essa história? Quem vai ter acesso a ela? Quem vai poder entrar dentro do museu e descobrir que dentro do museu tem um pantaleão, que lá tem hipólita, que tem coisas da Inconfidência Mineira? É só alguns corpos? E por que que só esses corpos podem ter acesso? Não é justo. Então, assim, vamos promover o turismo, mas vamos promover de forma igualitária”, defende.
Infelizmente, o estudante da Ufop, Anderson Luiz não teve a mesma sorte. Ele, que é estudande de Engenharia Urbana, conta que quando era mais novo foi visitar o Museu da Inconfidência e que quando seus amigos avisaram a direção que no grupo havia uma pessoa com deficiência, o único auxílio oferecido foi uma cadeira de rodas, o que para ele era irrelevante, porque enquanto pessoa com deficiência visual ele não tem dificuldade de locomoção. Além disso, ele e os amigos acharam curioso o fato de nenhuma obra possuir descrição em Libras, mas todas apresentarem a descrição em inglês:
Hoje, Cíntia, Júlio, Anderson e toda população que possui algum tipo de deficiência, ao saírem para visitar um espaço cultural não podem, ainda, considerar que o local estará preparado para recebê-lo, devendo contar com a acessibilidade atitudinal para terem o direito de inclusão, a primeira e única ação inclusiva de muitos locais.
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