top of page

População de rua em Ouro Preto cresce, revelando desigualdades e exclusão

Atualizado: 16 de ago. de 2023

Das cerca de 100 pessoas que vivem, hoje, nas ruas de Ouro Preto, metade é oriunda da própria cidade; maioria dessa população é formada por homens, pretos ou pardos, com menos de 50 anos

Sara Lambert e Vitória Calixto


Carlos, homem negro de 26 anos, nasceu em Ouro Preto, onde vive até hoje. Tinha um sonho de cursar Ciências da Computação, mas hoje vive nas ruas da cidade. Ele conta que saiu de casa por causa de conflitos familiares e da dependência ao álcool. A história de Carlos se assemelha a de muitas pessoas que hoje vivem nas ruas do Brasil. Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2019 a população de rua no país chegava a 204.660 pessoas; em 2022, esse número passou para 281.472 pessoas, representando um aumento de 38%.


Fonte: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 2022.


Em Ouro Preto (MG), a situação não é diferente. Conforme os dados da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, hoje vivem, em média, 100 pessoas nas ruas da cidade. A maioria dessa população (83%) é do sexo masculino; 63% se autodeclaram negros e pardos; 80% estão na faixa etária entre 30 e 49 anos; e mais de 50% desse público são naturais de Ouro Preto.


O secretário de Desenvolvimento Social Edvaldo Rocha ressalta que o número total de pessoas em situação de rua em Ouro Preto é variável, já que algumas estão em condição transitória, ou seja, migraram para outros territórios ou retornaram para a cidade de origem. Nesse cenário surgiram iniciativas que buscam auxiliar essa população de forma que seus direitos básicos sejam garantidos. Uma delas é o Centro de Referência Especializado para a População em Situação de Rua (Centro POP), em Ouro Preto, inaugurado em novembro de 2022.


Segundo a coordenadora do Centro, Tayana Lopes, diversos são os motivos que levam essas pessoas a estarem nessa situação, como desemprego, conflitos familiares, uso de substâncias e a saída do sistema prisional, não recebendo oportunidades para superarem tais dificuldades. Com isso, ela reforça um dos objetivos do Centro: “A gente trabalha em cima disso, na ressignificação do sujeito, ajudando na reconstrução da autonomia e do protagonismo”.


Segurança


Sandra, mulher negra de 51 anos, é natural de Ouro Preto e vive nas ruas há alguns meses. Ela conta que não tem contato com a família, que também é da cidade. Para ela, o Centro POP é um lugar seguro, onde pode passar o tempo e se sentir melhor, sem ser discriminada, já que o medo por ser mulher e morar nas ruas é ainda maior. “É muita insegurança, é muito ruim”, conta Sandra.


O Centro é um serviço do Ministério da Cidadania em parceria com prefeituras, e que visa contemplar jovens, adultos, idosos e famílias em situação de rua. Tayana afirma que, por dia, já foram recebidas cerca de 35 pessoas, a maioria homens e negros, e que, em média, 20 pessoas vão ao Centro diariamente. Desde sua inauguração, foram atendidas por volta de 80 pessoas até o final de dezembro de 2022.


Nesse local, as pessoas fazem refeições; têm espaço para higiene pessoal e lavar suas roupas; têm apoio para conseguir documentos pessoais; guardam seus pertences; obtêm informações sobre trabalho e tiram dúvidas sobre como ter acesso aos seus direitos. Além disso, também são ofertadas oficinas. O atendimento é gratuito e não é necessário ter documento para ser atendido.


Morador de rua entrando no Centro POP | Foto • Sara Lambert

#ParaTodosVerem: A foto mostra um morador de rua e seu cachorro em uma casa rosa claro, com um grande portão vinho. Ao lado, é possível ver uma placa escrito "CENTRO POP" e uma janela aberta, cor vinho e amarelo escuro. Em cima do portão, está o número 109 e mais três janelas também abertas, na cor vinho e amarelo escuro.


Outra iniciativa que também apoia famílias em situação de rua é a Ocupação Chico Rei, que atualmente ocupa duas áreas: uma na entrada da cidade histórica, em um terreno compreendido entre o trevo de Jacuba e o Passa-Dez, e outra no Bairro Saramenha, localizada atrás da Unidade de Pronto-Atendimento Dom Orione.


Segundo uma das coordenadoras da ocupação, Natália De Cássia, cerca de 22 famílias vivem hoje na ocupação de Saramenha, sendo que oito delas estavam em situação de rua. A ocupação se mantém e consegue auxiliar essas pessoas através de ajuda comunitária, doações e “vaquinhas”, sem qualquer suporte de órgãos oficiais.


A Ocupação Chico Rei foi criada em 2015, com o propósito de conquistar terras seguras, habitação digna e educação de qualidade para a população em condição de vulnerabilidade e pobreza na cidade. Em 2020, a ocupação associou-se ao Movimento de Trabalhadores Sem Teto (MTST) para reivindicar à Prefeitura de Ouro Preto a devolução de terras para que parte delas pudesse ser destinada à construção de moradias para famílias de baixa renda e moradores em situação de rua.


Área ocupada pela iniciativa popular, Bairro Taquaral | Foto • Ocupação Chico Rei

#ParaTodosVerem: a foto mostra um acampamento, feito com bambu, que está ao redor de uma mata e com uma lona azul e pessoas sentadas em cadeiras brancas, na frente da estrutura tem uma faixa com a frase “Ocupação Novo Taquaral” em vermelho.


Grupo trabalha coletivamente na construção de uma moradia, em uma iniciativa da Ocupação Chico Rei | Foto • Ocupação Chico Rei

#ParaTodosVerem: a imagem mostra homens colocando tijolos para construir uma casa, no espaço tem um monte com cimento e um cachorro.


Conforme a pesquisa nacional sobre a população em situação de rua, no Brasil, publicada pela Secretaria Nacional de Assistência Social, em 2009, a população em situação de rua caracteriza-se por ser um grupo populacional heterogêneo, composto por pessoas com diferentes realidades. Algo comum para essa população é a condição de pobreza absoluta, vínculos interrompidos ou fragilizados e falta de habitação convencional regular.


Nessa situação, a rua é usada como espaço de moradia e sustento, por caráter temporário ou de forma permanente. Com a chegada da pandemia, em 2020, esses fatores só se agravaram, ou seja, a pandemia veio para escancarar problemas já existentes no país, gerando o aumento dessa população nas ruas.


Outra situação que se agravou com a pandemia foi a de imigrantes como a do Miguel, homem negro de 60 anos, artista e venezuelano. Ele relata que chegou em Ouro Preto, local que define como “acolhedor”, há dois meses, mas está no Brasil há dois anos, desde que foi embora de seu país natal. Hoje, ele vive solitário nas ruas da cidade, mas sempre lembra de seus três filhos com os olhos cheios d'água e muita saudade. Sua solidão, muitas vezes, é preenchida pelo cigarro e pelo álcool, o companheiro de diversas pessoas em situação de rua, assim como Miguel.


O morador de rua venezuelano Miguel, atendido pelo Centro Pop, veste uma camiseta pintada por ele | Foto • Sara Lambert

#ParaTodosVerem: a foto mostra um homem negro com a mão no queixo olhando pra cima. Ele veste uma calça jeans e uma camiseta com uma pintura, além do casaco preto e chinelo nos pés.


Vulnerabilidades


Segundo o Secretário Municipal de Desenvolvimento Social de Ouro Preto, Edvaldo Rocha, a pandemia é um fator importante para explicar o crescimento da população em situação de rua. Mas que, mesmo antes dela, já havia um ambiente de exclusão social que coloca essas pessoas em condições de vulnerabilidade. “A pandemia só veio fortalecer aquilo que já era fato: aqueles que tiveram menos inserção na educação e capacitação foram expulsos do mercado de trabalho, e isso não é diferente com a população em situação de rua. Contudo, fatores como desemprego e conflitos familiares se acentuaram nessa conjuntura, havendo assim um reflexo no aumento de pessoas inseridas nessa realidade”, explicou.


Para a arquiteta e urbanista Thais Padula, pesquisadora no assunto, o aumento da população de rua em Ouro Preto está relacionado diretamente com o Governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. “A falta de moradia, direito básico da nossa Constituição, é um problema sério por todo Brasil, e Ouro Preto, como cidade turística e histórica, não é exceção. Principalmente no momento atual que estamos vivendo, em um Brasil pós-pandemia, após quatro anos de um governo de extrema direita que abandonou a população brasileira, retirou políticas públicas e todo suporte à população marginalizada do país”, afirma Thais.


Na opinião da pesquisadora, os moradores de rua correspondem a um contingente populacional das cidades, sobretudo dos grandes centros urbanos. No entanto, a forma não convencional de seu modo de vida é vista pelo poder público e pela sociedade como indesejável. Essa população é encarada como um problema e são utilizados mecanismos que visam o afastamento desse grupo de determinados espaços da cidade.


A professora do curso de Arquitetura e Urbanismo e no Programa de Pós-Graduação "Novos Direitos, Novos Sujeitos”, da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), Karine Gonçalves, afirma que não apenas em Ouro Preto, mas nas cidades de um modo geral, os moradores de rua são afastados dos centros turísticos. “A questão é que as condições de vida das pessoas moradoras de rua está vinculado aos centros urbanos, pois dali extraem as bases físicas e materiais para mais um dia. Mas, como o centro turístico é geralmente o cartão postal da cidade, por seu valor de troca, é exatamente nele que ações higienistas, de limpeza urbana, acabam ocorrendo, podendo conduzir a processos de gentrificação”.


De acordo com a monografia em Arquitetura, defendida por Thais Padula, o Centro Turístico de Ouro Preto é um dos principais focos do marketing urbano da cidade, devido à sua localização e relevância histórica. Por esse motivo, esses locais são apropriados pelo comércio turístico, transformando as relações entre a população e o espaço urbano, gerando processos de gentrificação.


Esse termo refere-se ao processo de segregação socioespacial vivenciado em áreas urbanas, caracterizado pela valorização acentuada de determinada área, que culmina na saída de moradores da região em razão do aumento local do custo de vida. Thais revela em seu estudo que “os moradores de rua são ainda mais excluídos e marginalizados da sociedade, e não trazem vantagens para os interesses da iniciativa privada ou pública, tornando sua presença no Centro Histórico pouco conveniente e até indesejada".


Esse é o caso do Carlos, que geralmente mora nas ruas do Bairro Santa Cruz. De acordo com a tese de doutorado na área de geografia humana, escrita por Everaldo Costa, em 2011, para a Universidade de São Paulo (USP), o bairro é caracterizado como Nível VI, isto é, um bairro vulnerabilizado socioeconomicamente, que além dos critérios apresentados por Costa, ainda possui o agravante de estar em áreas de alto risco geológico na cidade de Ouro Preto.


A coordenadora do Centro POP afirma que os próprios moradores do Bairro Antônio Dias, onde fica localizado o Centro, reclamam da população de rua que agora frequenta a região. “No começo, chegou muita demanda de que deveríamos tirar essas pessoas daqui. ‘Isso não pode ser aqui, tem que ser em um lugar mais afastado’ (diziam os moradores)”, conta. Entretanto, Tayana afirma que o trabalho do Centro POP também é reforçar para essas pessoas que elas têm o direito de acessar esses espaços de Ouro Preto, como museus, igrejas e a própria universidade. “A ideia que a gente tenta trazer é de pertencimento, não só das ruas de Ouro Preto mas também pertencimento e conhecimento da nossa história”.







Comentários


bottom of page