Educadores da rede municipal de ensino relatam as dificuldades, as lutas e a falta de uma política pública local para lidar com os déficits de aprendizagem
Por Isabela Sampaio, Karolayne Santos e Samuel Ribeiro
Estudante da Escola Estadual Renê Giannetti, do primeiro período | Foto: Karolayne Santos
#PraTodosVerem: Na imagem há uma criança negra de cabelos cacheados soltos, sentada em uma mesa cinza com detalhes em vermelho, segurando um lápis sobre uma folha A4. Na sua frente há uma cadeira vermelha e no fundo da imagem se vêem as mochilas de outras crianças.
Após mais de dois anos de ensino remoto, implementado em função das regras de distanciamento social, decorrentes da pandemia de Covid-19, as escolas da rede Municipal de Ouro Preto voltaram a ter aulas presenciais em 2022. Para essa nova etapa, professores e pedagogos de instituições da cidade, ainda que sem o apoio dos órgãos municipais, segundo o que elas mesmo relatam, buscam entender e fazer frente aos déficits que o processo de alfabetização pós-pandemia trouxe. Reforçam a necessidade de a gestão municipal desenvolver políticas públicas e oferecer orientações que auxiliem no processo de aprendizagem, tanto para sanar as lacunas trazidas pelo ensino remoto, quanto para melhorar a adequação de professores, pais e alunos a esta retomada.
A equipe do Lampião visitou duas escolas da rede municipal que estão lidando com diversas dificuldades em seu dia a dia. A primeira foi a Escola Municipal Renê Giannetti, localizada no bairro Saramenha, em Ouro Preto, e que conta com mais de 140 alunos matriculados entre o maternal e o quinto ano do ensino fundamental I. Segundo a Secretaria de Educação, a instituição possui o maior índice de alfabetização da cidade, considerando a proporção de crianças que possuem habilidades básicas de leitura e escrita em determinada faixa etária ou região.
Pátio da Escola Municipal Renê Giannetti | Foto: Karolayne Santos
#PraTodosVerem: Na fotografia podemos
ver o pátio da Escola Renê Giannetti. No fundo da imagem, há uma construção, nas cores branco e cinza, onde fica o corredor com as salas de aula. No lado direito podemos ver uma parede verde com grandes onde fica a quadra escolar, também conseguimos ver as fiações de rede elétrica e ao fundo visualizamos uma casa verde e árvores.
A outra visitada foi a Escola Municipal Monsenhor João Castilho Barbosa, localizada no bairro Barra, em Ouro Preto. A instituição conta com mais de 130 alunos matriculados e atende as turmas de educação infantil, ensino fundamental I e II e a Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Pátio da Escola Municipal Monsenhor João Castilho Barbosa | Foto: Isabela Sampaio
#PraTodosVerem: No centro da fotografia podemos ver o pátio da Escola Municipal Monsenhor João Castilho Barbosa, o prédio da escola é pintado com cores verde e brancas, com alguns bancos encostados na parede, suas janelas possuem grades de metal. No chão há desenhos coloridos de algumas brincadeiras, por exemplo amarelinha.
O lado esquerdo da imagem contém um parquinho para as crianças da escola, e mais ao fundo é possível ver uma fileira de casas próximas à escola.
Principais dificuldades
Pedagoga da escola Renê Gianetti desde 1993, Janaina Pena, 55 anos, contou que retomar o processo de alfabetização na instituição não está sendo nada fácil. Com o retorno das aulas, grande parte dos estudantes sentiu o impacto da ausência das atividades presenciais que se estendeu ao longo da pandemia.
Segundo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a alfabetização, tradicionalmente uma etapa importante nos primeiros anos escolares, se dá entre os 1º e 2º anos do Ensino Fundamental, onde as crianças mergulham na identificação das letras, sons e na formação das primeiras palavras. Com o distanciamento social ocorrido até 2022 e a consequente suspensão das aulas presenciais, alguns alunos, por não conseguirem acompanhar as atividades propostas remotamente, ficaram com lacunas no aprendizado. Janaína revela que na escola existiram casos de estudantes que ficaram quase dois anos sem realizar qualquer atividade proposta pela escola no período remoto.
“Nas turmas de primeiro e segundo ano, no ano passado, tivemos um trabalho muito grande feito com a professora se desdobrando para atender, no mesmo espaço, crianças que já estavam lendo, porque as famílias investiram durante a pandemia em aulas particulares. Ao mesmo tempo que tínhamos crianças que ficaram dois anos sem acesso a nenhuma atividade de alfabetização.”
A falta de suporte e direcionamento por parte da Secretaria de Educação de Ouro Preto, após o período crítico da pandemia, intensificou os desafios enfrentados pelos educadores no processo de alfabetização. Janaina, entre outros professores, expõe uma ausência de orientações claras sobre como retomar e adaptar o processo de alfabetização após a interrupção das aulas presenciais.
“Estávamos praticamente dois anos sem aulas e, no final de 2021, a prefeitura apenas disse para voltarmos. Não houve uma reunião, um ofício, um encontro dizendo como seria esse retorno e como seria feito dali para frente… Nós voltamos como se tivéssemos voltando de um feriado.”, disse Janaina Pena.
A negligência por parte do poder público em fornecer diretrizes adequadas resultou em um hiato considerável no apoio aos professores. Janaina destaca que somente após o segundo ano de pandemia é que conseguiram obter algum tipo de auxílio por meio da distribuição de apostilas, pela Secretaria de Educação, um recurso que, apesar de tardio, representou um passo importante para dar continuidade ao processo de alfabetização e minimizar as lacunas no aprendizado dos alunos.
Pedagoga da Escola Monsenhor João Castilho Barbosa há mais de cinco anos, Rubênia Rubens, 59, também destacou outras dificuldades identificadas nos alunos na volta do ensino presencial. Para ela, se o retorno presencial é algo indispensável, a própria adaptação ao “novo” ambiente escolar também virou um obstáculo significativo, devido a dificuldades de socialização dos alunos e de concentração em sala de aula, principalmente para aqueles que já estavam acostumados com a flexibilidade do ensino remoto.
“Não foi só a questão da alfabetização que ficou a desejar, mas também as questões das relações que mudaram. A questão da criança não conseguir se concentrar, porque muito desse tempo que permaneceram fora da escola, estavam na frente de uma tela ou ficaram reclusas, sem a oportunidade de uma convivência, de uma socialização.”
Rubênia ainda cita a importância da discussão do tema “Alfabetização pós-pandemia” depois do retorno às aulas. Ela relatou a mesma ausência de apoio por parte da Secretaria de Educação do município para auxiliar os educadores. “Especialmente sobre isso, eu não percebi um novo avanço… Não tivemos nenhum encontro que abordasse especificamente o pós-pandemia.”, contou ela.
Adriana Rioga, 36, professora das turmas do quarto e quinto ano da Escola Renê Gianetti, explicou que com a falta de monitoramento em casa, um dos principais déficits pós-pandemia notado está na alfabetização. Foi possível constatar que alguns alunos do quarto ano ainda não alcançaram o nível esperado de leitura e escrita, o que era o esperado antes da pandemia. Essa deficiência na alfabetização se reflete diretamente em outras áreas do conhecimento, como a matemática, onde alunos que não dominam plenamente a leitura enfrentam dificuldades em resolver situações-problema.
Para lidar com esse desnível de aprendizado, a professora adotou uma abordagem individualizada, realizando avaliações para compreender o estágio de cada aluno. Essa análise minuciosa revelou uma disparidade significativa no domínio dos conteúdos, com alguns alunos ainda se concentrando em conceitos básicos de divisão matemática, enquanto outros já avançaram para a multiplicação. Essa variação no conhecimento evidencia a complexidade da situação pós-pandemia, exigindo uma atenção individualizada para cada estudante.
Adriana relata que o apoio da gestão de educação do município precisa ser mais efetivo, disponibilizando mais profissionais alfabetizadores às escolas, para acelerar a recuperação de alguns alunos. Além de mais projetos voltados à alfabetização pós-pandemia, na busca por reduzir seus impactos.
“Acredito que se tivesse um professor de apoio no contraturno, além do professor que já tem na escola, um profissional alfabetizador, ou mais projetos de alfabetização ajudaria bastante no processo. Porque é muito difícil, tenho alunos no quarto ano do fundamental que ainda não são alfabetizados.”, enfatiza a professora.
A equipe do Lampião entrou em contato com a Secretaria de Educação de Ouro Preto, por várias vezes, buscando escutar, entender e esclarecer os fatos relatados nas escolas visitadas. Além de solicitar o acesso a índices de desempenho da educação na cidade, informação que deveria ser pública. Mas até a data de publicação desta reportagem não obtivemos respostas para nenhuma destas questões.
Reformas
A Escola Monsenhor João Castilho Barbosa passou por várias reformas no último ano. As obras começaram em 2021, durante a pandemia, quando as aulas estavam suspensas. Apesar do decreto da prefeitura, no final de novembro desse mesmo ano, autorizando o retorno às aulas, a reforma da escola ainda não havia sido concluída.
Em março de 2022, pais e alunos protestaram, durante a reunião da Câmara Municipal, contra as obras, que inclusive ficaram paralisadas por um período após seu começo, e acabaram por obrigara as aulas continuarem sendo realizadas online. O que demonstra uma falta aparente de planejamento e transparência da prefeitura quanto ao retorno presencial nessa escola. Os responsáveis cobraram da prefeitura um espaço físico para a realização das atividades presenciais, visando proporcionar um ensino mais efetivo para a população.
Fabianne Rosa, 30, moradora de Ouro Preto e mãe de duas ex-alunas da escola, compartilhou que, devido à demora na retomada das aulas presenciais na instituição, foi necessário matricular suas filhas em outra escola para evitar qualquer déficit educacional.
“Não imaginávamos que as obras iriam demorar esse tempo todo … Nem que seriam paralisadas por um período, atrasando a volta às aulas presenciais… A barra foi uma das últimas escolas a retomarem presencialmente por isso decidi matricular as meninas em outra escola para que elas não a demora não as afetasse no processo de aprendizagem”. Fabianne Rosa - Mãe
A Escola Renê Giannetti iniciou sua reforma em julho deste ano e ainda não foi concluída. Janaina Pena mencionou que a instituição não pôde receber seis computadores e uma mesa de alfabetização da prefeitura devido à continuidade das obras na escola.
Biblioteca da Escola Municipal Monsenhor João Castilho Barbosa | Foto: Karolayne Santos
#PraTodosVerem: Na fotografia há uma cadeira verde de madeira e vazia ao fundo da imagem, há três estantes na cor cinza repletas de livros de vários tamanhos e cores.
Novas metodologias
Mesmo com todas essas dificuldades, os educadores continuam em busca de desenvolver metodologias de aprendizagem que vão além da sala de aula. É o caso de Débora Fernandes, 49, que trabalha como professora da educação infantil e do primeiro ao quinto ano, na Escola Monsenhor João Castilho, desde 2001. Ela destacou as dificuldades do retorno após a pandemia, e conta que tenta suprir as necessidades de seus alunos por meio de parcerias e recursos fora da escola, por conta própria.
“Antes tínhamos a ideia de que alfabetizar deveria ser somente dentro da sala de aula, e não. Gosto muito de sair com meus alunos, pois nesse caminho eles vão olhando os cartazes na rua e reconhecendo cada letrinha e vão se familiarizando… Estou sempre à procura de novas parcerias para incentivar meus alunos…”, disse a professora.
Débora conta também sobre o projeto Silêncio Soberano, idealizado na própria escola, e adotado no processo de alfabetização. “Aqui na escola temos o projeto Silêncio Soberano. São 15 minutos, após o recreio, que toda escola para pra ler. Todo mundo.”
Para a professora, inserir no processo de aprendizado o exercício da leitura com os alunos desde o primeiro ano, possibilita a eles criarem o hábito que vai refletir positivamente no desenvolvimento da linguagem, no estímulo à imaginação e criatividade, além da melhoria das habilidades de leitura e escrita. Débora já vê resultados de seu trabalho nas turmas do quarto ano do ensino fundamental.
“Na turma do quarto ano, no último bimestre, estávamos trabalhando poesias e os alunos já conseguem ler livros de poesias de 150 páginas, de quase 200 páginas.”
Débora Fernandes, professora da Escola Municipal Monsenhor João Castilho há mais de 22 anos Barbosa | Foto: Karolayne Santos
#PraTodosVerem: Retrato da Professora Débora Fernandes, com cor de pele parda com seus cabelos cacheados presos, usando uma blusa branca com estampa de flores e a frase “Danger Drama” na cor rosa. Na frente do mural feito pelos seus alunos do quinto anos, para a semana da consciência negra na escola. Neste mural podemos ver palavras feitas com material EVA e folhas coloridas em formato de mãos.
As metodologias para o processo de alfabetização vêm sofrendo fortes mudanças ao longo do tempo. O uso de sons, parlendas, que são combinações de palavras presentes em brincadeiras infantis e na cultura popular, além de pinturas, jogos e elementos tecnológicos como telas interativas vem se tornando cada vez mais frequentes. O que, segundo a pedagoga Janaina, contribui para o desenvolvimento dos alunos.
Janaina afirma que a questão do processo de alfabetização é algo muito amplo e para se garantir um aprendizado bom é necessário estipular metas muito bem definidas. Cada professor deve saber o que esperar de cada criança de acordo com o nível em que ela está.
“O professor do maternal tem que saber exatamente o que se espera de uma criança do maternal ao final do ano. Professor do primeiro período também. E assim sucessivamente.”
Janaína destaca também a importância do contato com livros já nos primeiros anos escolares. Para a pedagoga, a leitura precisa fazer parte do dia a dia da criança, desde muito cedo, e que a escola faz questão de realizar um trabalho muito grande na formação desse leitor.
“Os meninos entram aqui no maternal e eles já têm contato com livros de literatura. Toda semana eles têm que levar um livro para casa. Toda semana nós temos o momento de contação de história, que é um projeto que envolve a escola inteira. Tem projetos em que o livro vai para casa para a família recontar.”, destaca a profissional.
A pedagoga relata que essas práticas são essenciais para a escola adquirir resultados positivos, seja no alto índice de alfabetização ou do Ideb, Índice de Desenvolvimento da Educação Básica. Além disso, é necessário um grande trabalho de acompanhamento desse processo de alfabetização, a partir do primeiro período, para se conhecer a fase de cada aluno.
Essas práticas tiveram reflexo na volta às aulas presenciais, pois apesar de muitos alunos apresentarem dificuldades, cada professor pode realizar uma avaliação individual dos alunos e estipular metas de aprendizagem a partir dessa análise.
“A principal estratégia adotada para que pudéssemos suprir o déficit causado pela pandemia foi manter uma avaliação regular, de maneira que a professora soubesse exatamente o que precisava ser feito com cada grupo, dentro da sala de aula. E com isso, trabalhar atividades diferenciadas para cada um desses grupos." opinou Janaina Pena.
Turma do primeiro período fazendo atividade sobre o livro “Animãos” de Paz Rodero | Foto: Karolayne Santos
#PraTodosVerem: Na fotografia podemos ver, do pescoço à cintura, um aluno sentado em sua cadeira. Na mesa escolar há um tubo de tinta verde e uma folha A4 com desenho de suas mãos. Vemos também a mão da professora segurando um pincel de base na cor amarela ajudando o aluno na atividade. É possível ainda ver parcialmente as palmas das mãos da criança também pintadas de verde.
Perspectivas de futuro
Mesmo sendo um grande desafio o processo de alfabetização pós-pandemia, educadores como Débora Fernandes possuem expectativas positivas para o futuro. Segundo ela, alfabetizar é sempre desafiador no Brasil, mas com a presença e o apoio da família, e principalmente do poder público, é possível esperar um desempenho melhor das crianças.
“Vejo a alfabetização, como um processo que precisa ser constante e bem organizado… Acredito que o incentivo à leitura também seja um caminho para que o processo cresça ainda mais”. Débora Fernandes - professora.
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