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Corpos históricos de Mariana

Atualizado: 9 de ago. de 2023

Um pouco da história de Mariana contada a partir do olhar de quem carrega consigo um mundo de vivências na cidade

Mão de Seu Percival | Foto • Mariana Ferreira

Jacqueline Ferreira e Mariana Santos


A cidade de Mariana está presente em inúmeros livros que contam as memórias do Brasil, com detalhes importantes para a construção da sociedade em seus mais diversos eixos. Há quem diga que a arquitetura de uma cidade reflete a realidade: suas cores, seu design e seus padrões referenciam desde pessoas até histórias que ocupam este lugar.


No entanto, há muito a ser contado por moradores que dividem o dia a dia entre si nos espaços que já foram habitados por figuras históricas. Esses fatos foram apurados em conversas no meio da tarde na Praça Gomes Freire e na Praça da Sé, famosos pontos de encontro localizados no centro da cidade. A partir destas perspectivas, o passado é reconstruído ao ser relatado por ângulos particulares e legítimos.


Janela laranja do centro histórico | Foto • Jacqueline Ferreira

O que as portas e janelas de Mariana contam sobre a cidade?


As linhas presentes nas paredes, consideradas meras rachaduras ao olho nu, são na verdade um tecido de histórias. Paredes que resistem ao tempo, preservadas em meio a novas sobreposições de tinta, denunciam que essas marcas são parte de uma cidade histórica.


Há quem venha conhecer mais através das portas, janelas, telhados, igrejas, museus e tantos outros detalhes que cercam este lugar. No meio de fotos e de um roteiro planejado, esquecemos de ouvir as maiores histórias da região: aquelas que os olhares contam.


A origem do nome da cidade e seus vieses


“Mariana se chama Mariana por causa da Rainha de Portugal, que era Maria Ana de Áustria”, afirmou o morador local, natural da cidade, Percival Neves Ribeiro, de 84 anos. Percival lecionou matemática durante 34 anos, mas é um historiador entusiasta das memórias da Primaz de Minas. Hoje aposentado, ele aprecia boas narrativas como se tudo ainda fosse vivido em sua memória, além de contar, com detalhes, cada linha que compõe as origens da região onde formou sua família.


Seu Percival foi professor no Colégio Providência, localizado na rua Dom Silvério, no centro. Seus dois filhos, hoje casados, já não moram mais com ele, que vive nos arredores do Centro Histórico e continua suas vivências em todos os cantos da cidade. “Se você for procurar história, aqui em cada esquina tem uma”, diz.


Ele conta, ainda, que há uma mina de ouro desativada embaixo da Praça Gomes Freire, ponto bastante frequentado por ele e diversos outros moradores. Enquanto centenas de pessoas caminham pelo ambiente, Percival relata que a antiga mina se chamava “Veia do Ouro”, pelo fato de seu caminho se assemelhar, na época, a uma veia humana.



Mãos com veias destacadas de Seu Percival | Foto • Mariana Ferreira

Memória Viva


Do outro lado da Praça do Jardim, Seu José Geraldo andava sem pressa, enquanto carregava uma sacola e uma bolsa lateral. Com o chapéu na cabeça para protegê-lo do sol forte que fazia naquela manhã, vestia sua camisa de manga longa com botões de cores diferentes que também carregam memórias de sua história.


Senhor José Geraldo | Foto • Jacqueline Ferreira

O senhor de 78 anos relata que veio para a cidade aos 15 anos de idade e que trabalhou no “Ginásio” - referência que fez ao atual Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA), campus da Universidade Federal de Ouro Preto - desde que chegou. Seu José diz que morou em um barracão nos arredores do local e que forrava sua cama com mato.


Uma das pessoas que ajudaram Seu José quando ele chegou na cidade foi o Padre José Dias de Avelar, tendo sido homenageado com seu nome em um dos prédios do ICSA. O padre convidou o morador a trabalhar na portaria do prédio que hoje faz parte do campus da UFOP em Mariana.


Quando questionado sobre sua família, ele contou como conheceu sua atual esposa, com a qual é casado há 46 anos. Era um dia de sábado e ele a encontrou por acaso, enquanto ela estava na companhia de um outro rapaz. Seu José teve a certeza de que queria conhecê-la e, por isso, encarou o acompanhante de sua futura esposa. “Fulano, a cara que eu bater o olho nela, vem nas minhas mãos”, disse sorrindo.


Uma história que se renova


Há quatro semanas, a historiadora Elasir Barbosa, 72, perdeu o marido e encontrou em José Ramos, seu atual companheiro, um motivo para seguir em frente. Ela contextualiza a cidade entre o passado e o presente. Moradora da Rua Direita há mais de 50 anos, conta relatos da rua refletindo sobre os sobrados e histórias da época de escravidão.


Elasir conta que a Rua Direita tem esse nome por conta da divisão que era feita entre os lados da rua: o lado direito ficavam os sobrados dos donos de escravos, e do lado esquerdo as casas menores pertenciam aos escravos, por isso não há casas historicamente grandes até hoje deste lado. As casas de sobrados ao lado esquerdo foram construídas posteriormente ao período da escravidão.


Dona Elasir estudou no Colégio Providência, aquele em que o Seu Percival, nosso primeiro entrevistado, lecionou. Mas foi na faculdade que ela conheceu seu marido, com quem viveu 34 anos de casados e teve três filhas: uma médica, uma tradutora e uma bióloga.


José Ramos, seu atual companheiro, foi funcionário da Mina da Passagem, famoso ponto turístico do distrito da cidade, Passagem de Mariana. Ele nos conta histórias sobre cerca de 4kg de ouro que via diariamente serem retirados da Mina. Embora a extração do material tenha sido muito importante para a história da cidade, Seu José, no início da conversa, disse que não tinha nada muito interessante para contribuir com a reportagem.


Uma vida de memórias fora do mapa


Não muito distante, o morador do Bairro Rosário, Seu Adão Geraldo, 75, fazia fotos com sua cadela da raça pinscher, chamada Mel, nos degraus da Praça Cláudio Manoel, também conhecida como Praça da Sé.


Do local, ele apontou para a igreja em que foi batizado, relembrando de como as coisas eram diferentes e de como a cidade mudou. Antigamente, os degraus da Igreja da Sé, os mesmos que serviam de cenário para as fotos de Mel hoje, não existiam.


Embora muita coisa tenha mudado, Seu Adão afirma que a praça da Sé, após as reformas que foram realizadas desde seu batismo até os dias atuais, voltou a ser como era em suas lembranças da infância e, hoje em dia, gosta de ir às tardes de sol,, sentar para observar o movimento da cidade e brincar ao ar livre com sua cachorra.

Senhor Adão | Foto • Jacqueline Ferreira

Lembranças que se movimentam


Após o Ciclo do Ouro, a cidade foi perdendo sua evidência. Era como se, com o fim da serventia das minas de ouro, não houvesse nada relevante para a história presente. Mas não são apenas esses fatos que levaram a cidade até os livros. Em cada canto, há pessoas reescrevendo sua própria relevância na cidade.


Quantas memórias Mariana guarda que não podem ser contadas nos livros, porque estão vivas historicamente nas veias do coração?


As histórias contadas aqui, são apenas algumas que pudemos encontrar nas ruas de Mariana em um final de semana. Existem diversas outras histórias, vivas na memória de uma população que pode contá-las com riqueza de detalhes de inúmeros fatos históricos não abordados em outros lugares.


Quando estiver andando pelas praças ou nas ruas de pedras, olhe ao redor e se pergunte qual pessoa poderia te contar boas histórias. Assim como dito por Seu Percival, é possível se surpreender em cada esquina.


As portas do enredo popular guardam informações estruturais da cidade que não podem ser apagadas. Muito além da história e muito mais que prédios preservados, Mariana vive e deve sua existência ao que os marianenses falam e o que seus olhares contam.


Seu Percival sorrindo | Foto • Mariana Ferreira








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