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Miguel Burnier: a cultura resiste em meio aos desafios do êxodo

Atualizado: 21 de dez. de 2023

Mesmo com a população reduzida após a atividade de mineradoras, o distrito ainda resiste por meio de expressões artísticas


Por Anna Millard, Beatriz Dantas e June Ruegger


#ParaTodosVerem: Em um ambiente rural, em primeiro plano, há um grupo de pessoas negras, vestidas de branco, com tambores pendurados pelos ombros, na lateral do quadril. Todos têm chapéus com fitas coloridas penduradas. Em segundo plano, há um grupo maior de pessoas, todas com camisas azuis e partes de baixo brancas.


Miguel Burnier, o maior distrito de Ouro Preto em extensão territorial, é um lugar rico em tradições. As bandas tradicionais e o Congado possuem uma influência fortíssima na cultura da Região dos Inconfidentes, mas existem desafios que dificultam a continuidade dessas manifestações. O distrito é também abundante em recursos naturais, sendo atraente para empresas mineradoras que exploram a extração de minério de ferro na localidade. Antes, a região possuía aproximadamente 5 mil habitantes, mas após o processo exploratório e o esgotamento de recursos, o êxodo se amplificou e atualmente há cerca de 100 pessoas vivendo no distrito, o que interfere diretamente na vida local.


A Banda de Congado de Santa Efigênia e Nossa Senhora do Rosário de Miguel Burnier, importante elemento da cultura do distrito, surgiu em 1947. Anicelia Xisto, 50, faz parte dessa história e hoje ocupa o papel de presidente do grupo. De acordo com ela, o Congado pode mudar muito de um lugar para o outro, mas é marcado por tambores, tocados em louvor aos santos protetores, neste caso, Santa Efigênia e Nossa Senhora do Rosário. A celebração também é organizada em algumas funções. O reinado — rei e princesa do Congo — fica na parte de trás, protegendo os congadeiros com orações. Eles são escolhidos através de reuniões entre o capitão, o reinado anterior e o presidente. O rei sempre é um homem mais velho e a princesa, uma jovem. Já a bandeireira tem a função de segurar a Bandeira do Rosário à frente de todos, abrindo os caminhos seguros. 


Capitão Xisto, durante desfile da banda, devidamente caracterizado | Foto: Peterson Bruschi

#ParaTodosVerem: Homem negro, em primeiro plano à direita da foto, posicionado de perfil. A imagem mostra o capitão dos ombros para cima, vestindo uma camisa branca e portando um chapéu de capitão enfeitado com fitas coloridas, miçangas e pequenos espelhos na frente.


Anicelia é também filha de Antônio Xisto, 88, o atual capitão do Congado, que chegou ao distrito ainda criança em 1958 e, desde então, participa da banda. No início, era dançante e hoje tem uma das mais importantes funções, sendo responsável por organizar todas as danças e ensaios, além de guiar o grupo durante a tocata.


Para melhor experiência, dê play no áudio abaixo e continue lendo a reportagem ouvindo os tambores do congado.



#PraTodosVerem: Há um tambor de madeira com cordas e acima um chapéu utilizado pelo capitão. O chapéu é branco, com miçangas prateadas, três espelhos (azul, amarelo e azul), uma fita dourada e a aba é preta com bolinhas brancas na borda.


“Anos atrás havia desafios em relação aos transportes para as viagens onde o Congado iria se apresentar”, conta Anicelia, se referindo ao contexto do êxodo. No entanto, ela ressalta que incentivos financeiros das próprias mineradoras têm viabilizado a locomoção para os ensaios e apresentações.


“Não podemos deixar a peteca cair, nossa busca é sempre por melhoria”, avalia a Presidente da Associação de Moradores de Miguel Burnier, Vânia Vicente, 68. Nascida em Burnier, ela é responsável por questões administrativas dos projetos socioculturais e diz que apesar de todos os desafios, a comunidade busca manter as tradições vivas. 



#ParaTodosVerem: Duas pessoas. Em primeiro plano, à direita da foto, de costas e desfocada, há uma mulher. A esquerda, sentada de frente, está Vânia com uma blusa azul e relógio no braço esquerdo, gesticulando, com a mão direita, enquanto responde as perguntas da entrevista. Ao fundo, uma caixa de papelão com canetas, cola e outros itens escolares.


A música viva por meio da Banda


Vânia é também a Presidente da Corporação Musical Sagrado Coração de Jesus e Maria, conhecida no distrito como a “A Banda”. “Por terem diminuído as pessoas, nós tentamos valorizar o lugar, manter as tradições, apesar das dificuldades. (...) Hoje buscamos muita gente de fora para compor os projetos, pois muita gente se foi. Algumas pessoas da banda ou do congado hoje moram em Pires, Lafaiete, Murtinho”, observa.


O próprio maestro regente já não mora no distrito. José Cecílio Jerônimo, 75, conhecido apenas como o “Seu Jerônimo”, lidera o conjunto formado por membros distribuídos nas regiões vizinhas ao distrito, como dito anteriormente por Vânia. À frente da banda desde 1980, ele conta que o grupo se reuniu devido à história do distrito com a mineração: “Quando a banda surgiu, foi mais iniciativa dos trabalhadores que se juntaram e resolveram fazer música”.


Em 1964, a Usina Wigg estava a todo vapor em Burnier, a estação ferroviária funcionava e entre os trabalhadores havia muitos músicos de fora. Anos depois, a empresa, pertencente a uma família italiana que comprou terrenos e começou a extração de minério no local, foi vendida para a Siderúrgica Barra Mansa, do Rio de Janeiro. Com essa mudança, a banda passou a se chamar Sagrado Coração de Jesus.  



#ParaTodosVerem: Homem negro posicionado ao centro da imagem, em pé no interior de uma igreja, uma janela aberta na parte de trás ilumina o ambiente. Ele veste uma camisa de botão azul claro e um casaco nas cores azul, branco e vermelho. Carrega uma expressão neutra com um meio sorriso.


O músico nasceu e foi criado no distrito de Passagem de Mariana. ”Aprendi música na Banda Santa Cecília de Passagem, eu aprendi a ser homem. Se eu sou essa pessoa hoje em dia, eu agradeço muito a sociedade musical Santa Cecília de Passagem pela música”, conta o músico. Ele se mudou para Burnier para trabalhar na siderúrgica, onde foi funcionário durante 25 anos, e ficou no distrito até se aposentar. Foi nessa época que ele entrou para a banda. 


Em 1995, a Siderúrgica Barra Mansa fechou as portas e os milhares de trabalhadores que habitavam o distrito foram embora. Com isso, a banda ficou 10 anos com suas atividades paradas. “Eu trabalhava e morava lá, mas com a firma fechada não tinha o que fazer.  Fui caçar rumo, todo mundo foi caçar outro rumo. A gente morava na casa da antiga companhia, não pagava água, nem luz, nem nada”,  recorda. 


Nos anos 2000, a Gerdau, maior empresa produtora de aço do país, adquiriu uma mina em Burnier. “Antes era uma vila que tinha mais ou menos umas 300 ou mais casas, mas a Gerdau jogou tudo no chão, não liberou casa para ninguém. Agora é só minério, não tem moradia mais não”. Jerônimo conta que tem companheiros nas bandas do Rosário e Alto da Cruz, também de Ouro Preto, que ajudam com dificuldades na banda desde a época. 


Durante os dez anos em que a banda ficou parada, José Cecílio se empenhou para não deixar as atividades musicais acabarem. “Eu fiquei tomando conta do patrimônio da banda e fazíamos uma ou duas tocadas por ano para não parar tudo. A gente luta com muita dificuldade, sempre lutou”, relata. Em 2006, a convite da prefeitura de Ouro Preto, a banda foi reativada e então acrescentou o “e Maria” em seu nome, firmando-se como a Corporação Musical Sagrado Coração de Jesus e Maria. Ele conta que junto à prefeitura, a Gerdau passou a contribuir para a manutenção da banda.


Uma das dificuldades que o maestro conta é a falta de músicos na banda atualmente. Após a saída da Siderúrgica Barra Mansa, o fechamento da Estação Ferroviária e a chegada da Gerdau, o distrito viveu um grande êxodo. “Lá é um lugarzinho muito pequeno,  sem recursos. Lá dentro de Miguel Burnier não tem mais casa. Agora é só minério. Na parte de baixo,  dos Ferroviários, as casas que ainda existem são moradores de lá, donos das casas, que já enraizaram ali, é difícil tirar eles de lá ", diz Jerônimo. 


A banda, que antes tinha 32 integrantes, conta agora com 22. Por não morarem em Miguel Burnier, os componentes que restaram enfrentam uma hora e meia de estrada para ensaiar por cerca de duas horas na Sede da Associação Comunitária. O espaço, onde também funciona o correio, foi cedido pelo município, e os ensaios acontecem uma vez por semana, aos sábados. “Não conseguimos ensaiar mais vezes porque a van é muito cara”.


Segundo o regente, antes da diminuição brusca na população, a banda fazia procissões, rodava por toda a vila e participava de festas como a de Maria Concebida e Sagrado Coração de Jesus: “Tinha barraquinha, show, tinha tudo. Hoje em dia não dá para fazer isso mais”. O distrito também é palco do Festival de Cultura de Miguel Burnier, em que a Banda e o Congado se apresentam. Porém, no ano passado não houve edição do evento. 


Além de reger a banda, Jerônimo dava aulas de música no passado, mas parou quando os funcionários foram embora. Atualmente, acontecem aulas de música na Escola Municipal Monsenhor Rafael. As crianças que quiserem podem se juntar à banda, que atualmente conta com alguns jovens membros. Desse modo, a corporação integra diferentes gerações, pois seu membro mais antigo é Paulo Raimundo, de 83 anos, que toca percussão e tuba.


Outro desafio que José encontrou foi a falta de instrumentos, pois os utilizados eram antigos e sucateados. Recentemente, no entanto, a corporação vem recebendo incentivos. O grupo obteve 20 novos instrumentos e, por meio da Lei Nº 8.313 de Incentivo à Cultura, tem obtido auxílio da Gerdau. A Agência de Desenvolvimento Econômico e Social de Ouro Preto (ADOP) faz a mediação distribuindo a verba arrecadada e prestando contas. Os membros da banda são gratificados, recebem uniforme, transporte e alimentação.


Para Jerônimo, a música é uma terapia. “A música que me salvou. Eu, com meus 75 anos, ainda tenho muita disposição, a música não tem idade”. O músico se diz esperançoso de que a banda continuará melhorando com os apoios recebidos. Ele conta que estava preparando uma pessoa para o substituir quando necessário, mas que não deu certo pois o candidato a futuro regente foi dar aulas em Itabirito. “Eu não tenho ninguém para me substituir quando sair, mas Deus vai colocar alguém no meu caminho. O pessoal de lá é muito dedicado, sei que o futuro da banda está bem encaminhado.”


#ParaTodosVerem: Estruturas de concreto pintadas em amarelo e vermelho em um ambiente rural, duas construções maiores à direita e à esquerda uma estrutura de tijolinhos, uma linha de trem passa entre os dois elementos. Há árvores e grama alta em volta.



A história de um lugar esquecido


#PraTodosVerem: os escritos “O Retrato Esquecido de Miguel Burnier” sobre a imagem de uma represa que ocupa da esquerda à direita da foto e, ao fundo, uma montanha coberta de vegetação e o céu azul com algumas nuvens brancas.


O jornalista Guilherme Oliveira, 30, produtor do documentário “O Retrato Esquecido de Miguel Burnier”, apresentou também seu ponto de vista como alguém que esteve em constante contato com a comunidade durante um ano. 


O filme, dividido em quatro partes, conta a história do distrito mostrando, primeiramente, a nostalgia em relação aos anos de abundância, recordando os festivais, os campeonatos e as festividades religiosas. Após essa contextualização, o documentário aborda o declínio do distrito em função da  extração de minério de ferro da região. Nos capítulos finais, é mostrado o cenário atual, permitindo que o telespectador entenda a degradação do lugar e certos conflitos entre os atuais habitantes. 


De acordo com ele, o distrito segue existindo por conta das pessoas que nasceram e cresceram lá e, por isso, querem que a cultura se perpetue. Entretanto, o documentarista explica que o êxodo acaba por ser inevitável, uma vez que as propostas das mineradoras para a  liberação do território em troca de indenização são tentadoras. Dessa forma, tem-se no distrito um conflito entre os que querem ficar e os que já não possuem tanto apego. Guilherme ainda pontua que a situação é complexa, visto que a mineração interfere na vida deles desde sempre.


“Tem a parte particular de Miguel Burnier, que são as casas que existem lá hoje. É esse pessoal das casas particulares que quer ser indenizado e ir embora de lá. E tem o pessoal que fala ‘a gente nasceu aqui, cresceu aqui. Tudo que a gente conhece é isso aqui, então queremos ficar aqui’” ele esclarece.



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