top of page

No coração da Chácara

Em meio à correria do cotidiano, a “Toca” se apresenta como alternativa de lazer, esporte e cultura para a população de Mariana, em especial para a comunidade do bairro São José.


Eliade Lisboa, Letícia Freitas e Lucas Menezes


Jovens jogam futevôlei na quadra de areia da Toca | Foto: Lucas Menezes

#Pratodosverem: Garoto de costas, com short preto e blusa branca com o número “dez” estampado, chuta uma bola em uma partida de futvôlei. Ao fundo, sete meninos jovens também jogam e esperam sua vez. O local é uma quadra aberta de areia com uma rede no meio delimitando o espaço dos times.


Num tempo em que as relações virtuais predominam na vida da população e aceleram o desejo por respostas imediatas, a prática e vivência cultural nos bairros, por exemplo, parece mais difícil de ser cultivada. O fato é que, cada dia mais, nos vemos isolados, agindo de forma individual, quando em diversas oportunidades, poderíamos desenvolver ações coletivas. 


Nesse contexto, o Complexo Desportivo e Cultural Toca do Zé Pereira, ou “Toca”, como é carinhosamente chamado, nos mostra que ainda existem espaços que mantêm uma chama acesa, inspirando sentimentos de pertencimento e preservação de culturas e tradições. Mais do que um grande espaço, do ponto de vista físico, a Toca se apresenta como uma opção para ocupar o tempo de jovens e adultos que frequentam as diversas atividades promovidas no local. 


Prédio sede da ADEM, Associação dos Moradores e Sociedade Musical São Vicente de Paulo | Foto: Letícia Freitas

#PraTodosVerem:A esquerda, há um prédio de três andares pintado de branco e azul, o prédio tem muitas janelas e varandas na lateral. À frente,há um pequeno pátio de cimento com uma pequena mesa e bancos no centro. Ao lado do pátio há um vestiário também azul. O ambiente possui gramas, coqueiro e um pequeno arbusto.


A Toca, localizada na rua Salomão de Vasconcelos do Bairro São José, popularmente conhecido como Chácara, integra diferentes grupos com objetivos sociais distintos em torno de um espaço de convivência, produção e promoção de várias atividades. O espaço conta com três quadras, vestiários, área de lazer, academia ao ar livre e, ainda, um prédio que abriga as sedes da Associação dos Moradores do Bairro São José, Associação das Pessoas com Deficiência de Mariana (ADEM), a Sociedade Musical São Vicente de Paulo e o Galpão “Eteovino Gomes da Silva”.


Localização da Toca da Chácara | Foto: reprodução/ Google Maps


Grupo Zé Pereira da Chácara 


O primeiro a chegar na Toca, em 1991, o Grupo Zé Pereira da Chácara dá origem ao nome do Complexo Desportivo e é uma das principais referências culturais da cidade, oriunda dos antigos folguedos luso-brasileiros que ainda resistem na região. Como uma brincadeira de rua, bonecos gigantes e excêntricos que dançam e giram sem parar, desfilam com suas roupas irreverentes e seu caráter grotesco em meio às folias carnavalescas de Mariana/MG. 


O Galpão “Eteovino Gomes da Silva” abriga cerca de 40 bonecos que medem, em média, dois metros de altura - alguns chegam a medir cinco metros - e com um peso médio de dez quilos. Eles são famosos nos desfiles do Zé Pereira,  que acontecem durante o Carnaval de Mariana, sendo os principais atrativos do grupo. 


Segundo relatos de moradores e frequentadores do local, tudo começou em 1846 com José Nogueira de Azevedo Paredes, um português que veio do Rio de Janeiro para Mariana e, na comunidade da Chácara, ensinou os moradores a fazerem os bonecos. De acordo com Hiago Ferreira, de 19 anos, atual secretário do Zé Pereira da Chácara, o grupo foi criado por negros e pessoas de baixa renda que queriam fazer parte do Carnaval.


Numa época em que a festa ainda era muito excludente ele explica que “os escravos ficavam de fora da festa, que era bem elitizada, então eles batucavam, se pintavam e pintavam animais também. O Zé Pereira também surgiu daí”. A união entre o batuque e a confecção dos chamados catitões, como são conhecidos os bonecos, deu origem a tradição que já dura quase dois séculos.



Bonecos do grupo Zé Pereira dentro do Galpão Eteovino Gomes da Silva | Foto: Letícia Freitas 

#PraTodosVerem: Mulher negra com as mãos acima da cabeça, trabalhando em uma boneca de dois metros. A boneca está pintada de rosa com a boca vermelha, cabelos pretos, olhos azuis e flores amarelas na cabeça. Ao fundo, também há bonecos ornamentados e pintados. O local é fechado com paredes brancas e tem uma porta azul aberta no fundo.


Ainda de acordo com Hiago, existiam grupos de outros bairros, como Barro Preto e São Gonçalo, mas, na cidade de Mariana, o grupo da Chácara foi o único que sobreviveu. Em 2013, a organização foi tombada como patrimônio imaterial municipal e, no momento, está tramitando na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, o Projeto de Lei 1.786/2023, que irá declarar o grupo como patrimônio cultural, histórico, turístico e social, de natureza material e imaterial a nível estadual, ou seja, reconhecido como patrimônio do Estado de Minas Gerais. 

 

Darlan Ferreira, 24 anos, se tornou presidente da Toca do Zé Pereira no dia primeiro de outubro deste ano. Apesar de recente no cargo, sua ligação com o grupo vem de longa data. Sua família, desde seus bisavós paternos e maternos, são do bairro Chácara e a maioria de seus membros, em especial os homens, participam do grupo transferindo a tradição uns para os outros. Confiante na aprovação do projeto de reconhecimento estadual, o presidente acredita que esse ato será uma chave fundamental para a preservação do grupo. 


A luta da Associação de Moradores 


Com o passar dos anos, o espaço que abrigava a Toca cresceu e o antigo campo de futebol deu lugar a uma quadra poliesportiva coberta. A Associação dos Moradores do Bairro São José, junto à Sociedade Musical São Vicente de Paulo, reivindicaram um prédio de 3 andares, com salões amplos para seus ensaios, eventos beneficentes e reuniões. Mais duas quadras foram construídas ao redor, uma de basquete e outra de areia, integrando o Complexo Desportivo e Cultural Toca do Zé Pereira. 


É nesse cenário que a Associação de Moradores começa a desenvolver suas atividades. O grupo, que antes não tinha uma sede, depois de muita luta, conseguiu um espaço próprio. Mas essa vitória, de acordo com a presidente da Associação de Moradores, Maria das Graças Fernandes, 65 anos, não foi fácil: “Nós nos sentamos muitas vezes pra falar, na prefeitura, com os próprios prefeitos. A sede da banda e da associação ficava em cima da Paróquia São Vicente, aqui no bairro, então nós e os vicentinos que corremos atrás. Às vezes ficávamos duas horas esperando, e ainda assim, o prefeito não nos atendia. Então, foi bem difícil conseguir esse espaço”, afirma a representante. 


Com o espaço conquistado, a Associação de Moradores passou a desenvolver ações beneficentes, a realizar bingos e a oferecer cursos de capacitação em sua sede. Hoje, aulas práticas de corte e costura, pintura em tecido e entalhe são promovidas gratuitamente e abertas a toda população. Apesar de todo esforço comunitário, as aulas sofrem grande esvaziamento. As oficinas de costura contam com poucas integrantes e os cursos de pintura e entalhe foram encerrados temporariamente devido a baixa adesão. 


As representantes da Associação encontram dificuldades em divulgar as atividades promovidas. Sem domínio de redes sociais ou outros meios de interação com a comunidade, os projetos dependem exclusivamente da divulgação boca a boca, prática que vem se mostrando pouco efetiva atualmente.   



Maria das Graças Fernandes participando da oficina de costura | Foto: Letícia Freitas

#PraTodosVerem: Senhora negra, com óculos, de cabelos brancos, sentada em frente a uma máquina de costura, concentrada em costurar um tecido branco. Ao fundo, um armário marrom com um tecido verde pendurado e outras mesas de costura. O lugar é fechado e tem paredes brancas.


Associação das Pessoas com Deficiência de Mariana (ADEM)


Apesar de ter sido reconhecida pela Câmara de Mariana com o título de Utilidade Pública em 2020, a ADEM também sofre com o esvaziamento. Alcançar o público-alvo e chamar a população para participar das atividades que oferece, parece ser um problema recorrente para algumas organizações que ocupam o espaço da Toca.


A Associação surgiu da mobilização de alguns moradores da cidade para reivindicação e luta por direitos das Pessoas com Deficiências (PcD) de Mariana. Antes, a sede estava localizada no bairro São Sebastião (Colina), onde o aluguel era pago com recursos próprios. Porém, no final do ano passado, a ADEM ganhou um período de aluguéis pagos, cedidos por um apoiador, no prédio do bairro São José. Com isso, a Associação estabeleceu a sua sede na Toca. 


A intenção é garantir serviços importantes para pessoas com deficiência, seja direta ou indiretamente. Atualmente, a principal atividade desenvolvida pela Associação é o projeto “Cuidar de quem cuida”, dirigindo os olhares para aqueles que cuidam de pessoas com deficiência, auxiliando no seu dia a dia e em sua saúde mental. Para isso, a associação oferece terapias complementares e integrativas, como Auriculoterapia, Tratamento Fitoterápico, Reflexologia e Aromaterapia, além de palestras sobre temas importantes, como o combate ao capacitismo. 



Diretoria voluntária, estagiárias e apoiadoras da ADEM | Foto: Letícia Freitas

#PraTodosVerem: Oito mulheres posam de pé para foto.Elas estão sorrindo e posicionadas uma ao lado da outra. Ao fundo, uma sala branca com uma prateleira cheia de roupas coloridas e manequins. 


Sociedade Musical São Vicente de Paulo 


No andar superior ao ocupado pela ADEM, está a Sociedade Musical São Vicente de Paulo, fundada em 09 de abril de 2002. No início, foi criada como uma escola de música para crianças e adolescentes, mas como a procura surpreendeu as expectativas, resolveram desenvolver uma banda de Música.

O grupo chega à Toca em 2014, onde promove aulas para crianças, jovens e adultos. De acordo com o presidente da entidade, Wilson Santos, a banda tem  “uma relação harmoniosa no bairro Chácara, com a Associação do Bairro, com o Zé Pereira da Chácara e com a igreja”. Principalmente a partir das aulas, a banda abrange um público não só do bairro Chácara, como também de Mariana em geral, além de alguns alunos do município de Ouro Preto.


O presidente do grupo ainda afirma: “sobre as influências da banda com a Toca, tem muito a ver ou tudo a ver. Pois, para dar vida aos bonecos pelas ruas da cidade, eles precisam da arte musical e instrumental que é realizada por músicos de bandas”. 


Em paralelo, o presidente do Zé Pereira, Darlan, contou que resolveu ceder alguns dos instrumentos de sopro do grupo para os meninos que frequentavam a Toca aprenderem e se organizarem para tocar junto nos desfiles, além de poderem  praticar e frequentar as aulas nos finais de semana. 


Atualmente, a regência da Sociedade Musical São Vicente de Paulo é de responsabilidade do musicista Giovanne Santos, de 20 anos, o maestro mais novo do Brasil, que assumiu a banda aos 18 anos. Ele coordena 30 músicos e 20 aprendizes.



Sede da Sociedade Musical São Vicente de Paulo | Foto: Letícia Freitas

#PraTodosVerem: Um prédio branco com uma árvore no centro, na lateral esquerda da construção há um desenho de São Vicente de Paulo, vestido com uma batina preta e uma corneta também preta na cabeça. Atrás da sua cabeça existe um círculo cinza e, em volta dele, os dizeres “Sociedade Musical São Vicente de Paulo”. Na lateral direita há um desenho de dois saxofones dourados com notas musicais sobre eles.


A banda, sempre que convidada, participa de diversos eventos, como procissões, encontros de bandas, apresentações nas escolas e demais festividades municipais. A sociedade vicentina, inclusive, se apresentou novamente no importante “Banda na Praça”, evento caracterizado como um encontro de bandas que acontece com regularidade desde 2018.


O esporte na Toca


Com um espaço completo para a prática dos mais variados esportes, como futsal, basquetebol, handebol, voleibol, vôlei de areia e até beach tennis, projetos como o Educar pelo Esporte fazem com que, todos os dias, crianças e adolescentes da cidade de Mariana sejam incentivados à prática esportiva. O Projeto chegou a atender 300 pessoas com suas atividades gratuitas só neste ano de 2023 em toda a cidade de Mariana.


Há anos que Alessandro Siqueira - ou “Léki”, como é conhecido - se envolve com os esportes, sendo o criador da Liga Cidade Alta de futebol no bairro Cabanas e frequentador da Toca desde criança. Sua ligação contínua com o esporte foi um dos principais motivos para ser convidado a trabalhar na Secretaria de Desportos de Mariana e, também, para coordenar o espaço destinado ao esporte no complexo do bairro Chácara. Para ele, “a Toca é um espaço completo, um espaço essencial. Com muitos anos de existência, as pessoas que se consideram realmente daqui, veem esse espaço como um quintal de casa, zelam pelo lugar”.


Pedro Lima, formado em educação física pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), faz parte da secretaria de desportos da cidade há um ano, e trouxe duas competições intermunicipais para a quadra da Chácara. Ele, que vive do esporte desde pequeno e já foi atleta, interpreta os impactos das práticas esportivas na vida da população como multifacetado. “O esporte transforma qualquer sociedade, ele transforma a realidade das pessoas, ele dá oportunidade. Então, eu busco constantemente estruturar os projetos visando esse bem impagável que o esporte tem.”, ressalta.


É por esse sentimento de amparo e lazer que a Toca é extremamente popular entre os jovens. As academias ao ar livre são ocupadas pela comunidade e as quadras estão frequentemente cheias por pessoas de todo o município. Alguns jovens entrevistados, que fazem treinos semanais no local, relatam que o espaço é conhecido por todos os seus colegas, que também frequentam o Zé Pereira para ver e ajudar com os bonecos. 


As atividades acontecem de segunda a sexta, durante todo o dia, e contemplam todas as faixas etárias, desde a infância até a terceira idade. A ginástica, por exemplo, é um projeto de condicionamento físico ao ar livre que acontece às terças e quintas-feiras, às 08h da manhã. Desde 2019, o projeto atende principalmente mulheres adultas e idosas, apesar de ser aberto a todos os públicos.


Um espaço de acolhimento 


O Complexo Desportivo é sinônimo, para muitos, de um ganho na qualidade de vida, saúde, bem estar e segurança. Para os jovens, que são maioria nas atividades ofertadas lá, ter um lugar para ficar no seu tempo livre garante, em alguma medida, o seu acesso à cultura, ao esporte e ao lazer. 


A Toca representa, ainda, um local de acolhimento que preserva tradições familiares e que mantém viva a memória do lugar, mas também cria novas vivências. É o que conta o Darlan: “eu cresci vendo a Toca do Zé Pereira, antes de eu nascer minha mãe já fazia parte e meu pai também. Inclusive, a festa de casamento deles foi aqui, tiraram os bonecos para fora e se casaram aqui.”

A esposa e os filhos do Darlan também participam das atividades do grupo. Gabriela Alves, 27 anos, está desde a quarentena ajudando a gerenciar as atividades do local. Ela reforça que a Toca “é um lugar que tem lazer, tem a quadra, tem a banda, tem o parquinho que muita gente vem pra ficar com as crianças aqui. Todo mundo fala: ‘vou jogar bola na Toca’, nome pelo qual ficou mais conhecido”


As famílias de Mariana encontram na Toca um espaço público acessível. O direito ao esporte e ao lazer é reconhecido pela Constituição Federal como essencial para o desenvolvimento pessoal e social das pessoas. Mas, para além disso, um local como a Toca é indispensável para criar um sentimento de pertencimento na população, que se reconhece como parte de um grupo maior. 


Comments


bottom of page