Parte de uma equipe majoritariamente feminina, Ana Paula enfrenta racismo, importunação sexual e uma série de discriminações no ofício da limpeza das ruas da cidade, mas se orgulha da profissão
Giulya Vasconcellos
“Bom, no começo eu tive um pouquinho de vergonha. Um pouquinho de receio. Mas, depois eu acostumei rapidinho. Minha questão era o uniforme porque quando eu comecei o uniforme era alaranjado. Bem alaranjado. A vergonha não era do serviço, era do uniforme, sabe? - ri - Mas depois eu acostumei. Hoje, eu gosto bastante!”
A profissional da capina da cidade de Mariana-MG, Ana Paula, conta que quem a apresentou ao trabalho foi a mãe, Maria do Carmo, outra integrante da equipe de funcionárias da limpeza urbana, formada por mulheres. Ela teve que deixar o trabalho com faxina por conta do pai que, na época, sofria de mal de Alzheimer - Ana Paula precisava cuidar dele. Esse foi um período muito difícil em sua vida.
Assim que o pai faleceu aos 92 anos, no dia 12 de agosto de 2015, Ana Paula - que, na época, já tinha três filhos - resolveu procurar emprego. Quando pergunto a idade das crianças nessa época, ela ri e diz que matemática não é seu forte. Fazemos as contas juntas e ela chega à conclusão que uma das crianças tinha 6 e a outra 4 anos. Ela deixa bem claro que procurava outros empregos e diz que a mãe sempre a chamava para trabalhar com limpeza urbana: “Vamos pra lá! Cê vai acostumar. É gostoso!”, Ana Paula diz, imitando o tom de voz da mãe.
Depois de uma certa insistência da dona Maria, Ana Paula resolveu entrar na capina, por ser a vaga que estava disponível no momento. Com persistência e coragem, aprendeu o serviço com as outras meninas. De acordo com ela, a limpeza doméstica é pior, assim como estudar. A profissional conta que estudou apenas até a oitava série, quando teve o primeiro filho, mas decidiu que com a capina ia ser diferente. Estava determinada.
Quando questiono se houve alguma situação na qual ela sentiu que foi tratada mal por conta de sua profissão, ela responde de imediato que é algo recorrente:
“Sempre tem as pessoas que a gente conhece e quando vê a gente trabalhando na rua, já finge que não conhece. Eu acho que é preconceito.”
E completa: “É porque tem certas pessoas que têm a mente pequena, né? Que, tipo, acha que a gente é menor do que eles ou que, talvez, não seja digno da amizade deles. Eu acho que é algo desse tipo. Pessoas que, na maioria das vezes, têm menos condições que a gente. Gente que precisa [do emprego] mas não dá o braço a torcer. Se fosse pra trabalhar fazendo o que a gente faz, não trabalharia.” Agora, Ana Paula sente total desprezo por essas pessoas, conclui que não fazem qualquer diferença em sua vida.
Dando nome a um dos preconceitos: racismo
Pergunto se ela se lembra de alguma situação na qual tenha sofrido racismo e ela pensa, mas, de início, não consegue distinguir ao certo quais situações vivenciadas por ela podem ser consideradas racismo. De repente, a lembrança a atropela e ela relata que, por diversas vezes, ao pedir água para alguns moradores durante o expediente, recebeu a água em copo descartável sujo. Para que não haja dúvidas, ela completa com convicção que se fosse uma pessoa branca pedindo água teria recebido em copo de vidro limpo.
A mulher negra de 32 anos tem consciência do fato de que o racismo é intensificado pelo preconceito em relação à profissão e o preconceito em relação à profissão é intensificado pelo racismo. Ela sente na pele o nojo e o desprezo presentes nessas atitudes, não precisando de qualquer teoria acadêmica para provar isso.
Apesar de manter uma postura descontraída e falar com aparente facilidade sobre todas essas questões, a profissional admite que o episódio dos copos a marcou bastante.
“Me senti pequena, né? Me senti menos. Depois a gente pensa: Não sou menos que ninguém, não sou pior que ninguém. Mas, querendo ou não, na hora, dá um baque, né?"
E finaliza: "Eu sempre pensei assim, só que tem coisa que a gente sente. Mesmo a gente não se abatendo com isso, não deixa de sentir, não.”
Válvulas de escape
Algo que conta muito nesses momentos é o apoio das colegas de trabalho. Segundo Ana, conversas sobre episódios como esse são rotineiras, assim como os relatos sobre a vida pessoal de cada uma, o que acaba sendo uma forma de distração, já que elas passam tanto tempo fora de casa. Na segunda-feira, cada uma conta como foi o fim de semana e elas se divertem com essas conversas. A mãe de Ana Paula, Maria do Carmo, é uma das maiores aliadas neste passatempo, sendo uma das pessoas que mais compartilha fofocas com a filha.
Quando entramos no assunto lazer, ela diz que consegue se divertir, mas que, quando chega em casa, só quer descansar. Infelizmente, para a profissional da capina, querer nem sempre é poder e os encargos domésticos a obrigam a postergar até o limite essa vontade. Quando chega em casa, precisa preparar o jantar e ajudar seus filhos com as atividades escolares. Mas, em suas folgas nos fins de semana, a jovem aproveita para ir a festas, shows e eventos de forró da cidade.
É uma mulher que gosta de se divertir e de ouvir música sertaneja para esquecer dos desafios do trabalho e dos problemas da vida. Aliás, esquecer é um exercício praticado com frequência pela profissional da capina.
Quando falo da prática do esquecer, não me refiro a uma falha de memória, mas ao ato de deixar de lado alguns acontecimentos e seguir em frente. Um exercício o qual acaba servindo como mecanismo de enfrentamento para o dia a dia.
É difícil ser mulher na rua, ela quem o diga
Ana Paula afirma, em um primeiro momento, que apesar de trabalhar em alguns lugares mais perigosos e de ter algum receio, se sente segura nas ruas. Mas, ao ser questionada sobre episódios de importunação sexual, ela diz: “Ah, sempre tem. É.. Já aconteceu.
Uma vez, eu tava capinando.. A gente capina com uma enxada pequena, aí tem uma posição específica, né? E já bateram na minha bunda pela janela do carro.”
Ela ri, um riso envergonhado. “Na hora eu fiquei sem reação. Mas eu tento levar mais na esportiva, né? Porque não teve nem tempo de ter reação. Porque passou, bateu e foi.”
Apesar de não ter dado tempo de reagir, a trabalhadora afirma saber bem qual reação gostaria de ter tido: “Eu gosto de xingar. Se tivesse dado tempo, com certeza eu teria xingado. Mas aí não deu tempo, né? Aí ficou por isso mesmo. Eu sou debochada, mas procurei levar na brincadeira. Apesar de saber que é sério. É grave. Não é brincadeira, mas… passou.”
Mesmo enfrentando situações como essa, ela diz não sentir medo da possibilidade de acontecer de novo. Diz que, se acontecer, vai xingar e seguir em frente. Se sente mal, pequena e impotente, mas precisa seguir. As contas dependem dela. A família depende dela. Então, a prática do esquecer é o que ela consegue fazer, mesmo que não se esqueça, de fato.
Refeitório improvisado
Entramos no assunto almoço e ela diz que a marmita, o fogareiro e o álcool para acender o fogo são suas companhias de rua. Quando chega a hora do almoço, as trabalhadoras procuram um local com sombra, sentam e esquentam a comida.
“Tem pessoas que dão a garagem, né? Uma varanda... Mas é difícil."
Ela continua: "Nois trabalha em cinco, seis pessoas, aí senta todo mundo e esquenta, almoça, bate papo, deita...Tira um cochilo quando o lugar tá tranquilo, né?!” Ana Paula conta entre risadas.
Pergunto se ela queria ter um lugar melhor pra comer e ela diz que já se acostumou a sentar no chão. É uma pessoa descontraída, que tenta ficar de bem com a vida, se divertir e relaxar da forma que dá. Gosta de conversar, tem um bom senso de humor e fala de tudo com facilidade. É sua maneira de passar o tempo. Simples e simpática, eu diria, apesar de se dizer debochada.
Mas simpatia tem limite
Outro desafio que a profissional encontra em seu trabalho é o calor. Encarar o sol escaldante enquanto capina, usando o uniforme que cobre, praticamente, todo seu corpo, torna o trabalho ainda mais desgastante. O tempo seco também é uma dificuldade.
As pessoas não são compreensivas em relação à poeira que se espalha enquanto limpam a rua. Xingam, reclamam e tornam todo o trabalho ainda mais difícil.
Há pouco tempo atrás, ela estava aparando a grama em uma rua próxima à praça Gomes Freire, quando uma mulher saiu de uma pousada e atravessou a rua. Ana Paula, na hora, percebeu que a mulher havia sido atingida por uma pedrinha que foi atirada pela roçadeira usada pela profissional. A trabalhadora conta que a mulher fez um escândalo dizendo para ela parar o serviço, afirmando que ia avisar para uma funcionária superior da empresa na qual Ana Paula trabalha que foi ela quem mandou parar. Segundo a profissional, a mulher dizia, aos berros, que Ana Paula ia quebrar seu carro e que foi atingida por uma pedra.
“Eu falei com ela assim: Cê tá precisando de algum socorro? Te machucou? Cê quer ir pro médico? Tá saindo sangue? Foi coisa grave? Num foi! Agora quanto ao carro, se cê tá muito incomodada, pega e coloca dentro da garagem porque a rua é pública e você não vai mandar na rua, não!” conta Ana Paula com desprezo, dessa vez imitando o próprio tom de voz. “E continuei fazendo meu serviço. E ela desaforada xingando, dizendo que ia ligar pra reclamar. Queria mandar na rua! Eu achei um desaforo! Mas aí eu continuei roçando, depois eu fui, tirei foto do carro bonitinho, né?!
Empatia em falta
Na fala da mulher que se incomodou com o serviço de Ana Paula é perceptível o quanto as pessoas se sentem superiores às trabalhadoras da limpeza urbana e o quanto se sentem no direito de mandar nelas. É quase como se fossem patrões e patroas das profissionais da limpeza e elas estivessem violando suas casas. A profissional da capina confirma que é exatamente assim que se sente. Ela relata que, certa vez, uma mulher a xingou por conta da poeira que Ana Paula acabou levantando em frente a uma loja de roupas.
"Tá fazendo poeira aqui, tá empoeirando minhas roupas!", diz imitando a mulher.
“Eu falei assim: Cê tá aí na loja pra vender, cê tá trabalhando, não é? Eu tô aqui fora, eu tô varrendo, eu tô trabalhando também!".
Quem pensa que essas pessoas estão apenas fazendo ameaças para intimidar está enganado. Segundo Ana Paula, as ligações de moradores reclamando das profissionais já viraram rotina. Fazem reclamações até mesmo na ouvidoria da Prefeitura de Mariana. Por mais que a trabalhadora tente ser educada e argumentar que está apenas fazendo seu trabalho, assim como as outras pessoas precisam fazer os delas, nunca é o suficiente. Não há empatia. Esses cidadãos não veem as trabalhadoras da limpeza urbana como pessoas, como iguais, que estão trabalhando como qualquer outra. O que prevalece é uma noção de subordinação, de superioridade.
A orientação dada às trabalhadoras pela coordenação da empresa de limpeza urbana é a de ignorar, um exercício que se tornou essencial e obrigatório para o dia a dia. Mas, apesar de ter que ignorar certas coisas e continuar trabalhando, Ana Paula deixa seu recado:
Agora ela usa o uniforme cinza, mas a cor do uniforme já não faz diferença. Sendo laranja ou cinza, a verdade é que ele acompanha a profissional em toda sua rotina e eu aposto que, se ele pudesse falar, diria que a mulher que o acompanha tem orgulho de si e uma força tão grande que seria capaz de tornar qualquer uniforme um símbolo de orgulho.
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