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Sinto falta de mim mesma

Atualizado: 9 de ago. de 2023


Voltar no tempo e reviver um passado glorioso: sentimentos traduzidos por uma fotografia | Foto • William Santos

Enrico Bertoni ,Tulio Dutra e William Santos


Alguns dizem que nasci no momento em que alguém idealizou a minha construção. Outros falam que foi quando o primeiro tijolo foi colocado na minha fundação. Eu prefiro a ideia de que nasci no instante em que as pessoas se juntaram pela primeira vez para celebrarmos a missa. Acredito que tenha sido entre 1978 e 1793. Na minha idade fica difícil lembrar exatamente como foi. São várias versões de uma mesma história, vários caminhos e até vidas que ajudaram a me construir e a chegar onde estou hoje.

É engraçado como o tempo funciona. Já fui tão cheia de vida e sempre animada para trazer mais pessoas junto a mim. Era especial acolher novos membros para que pudessem celebrar Bom Jesus, esse meu ilustre morador. Ele foi encontrado nas águas da cidade de Matosinhos e, saindo de Portugal, atravessou mares e montanhas até chegar aqui para morar comigo. Sempre fiz isso com muita dedicação, alegria e amor, mas, hoje, minha realidade é outra, anos de descuido com meu corpo me deixaram debilitada.


Sinto um vazio no meu interior, e olha que nem estou falando das obras de arte que viviam aqui. Sinto falta de mim mesma, das coisas que guardava em meu interior. Agora, quase não tenho mais pulso. Não sinto mais os diversos batimentos dos corações de vocês. Assim, eu sinto que também perdi o meu coração.


Antes, os avós traziam os pais, os pais traziam os filhos, os filhos traziam os netos… e foi assim por toda a minha vida. Incontáveis gerações passaram pelo meu corpo e fizeram parte de mim. Mas quando o corpo está na UTI, o que resta é apenas uma alma velha que luta para continuar vivendo. Parece que estou mesmo envelhecendo e, ao que tudo indica, estou sendo deixada de lado, como um artista que no passado fez fama e sucesso e que hoje está fora das paradas. Isso me lembra que, nos meus tempos áureos, nossos “espetáculos de fé” viviam lotados. Eu conseguia atrair pessoas de diversos locais que, ao ouvirem o badalar dos meus sinos, sabiam que o show já iria começar.


Quando penso nessas coisas, a nostalgia me invade, não só por conta dos momentos alegres, mas sinto falta também de me sentir forte e bonita. Ainda consigo me lembrar do brilho dos olhares que recebia, do respeito que tinham ao me ver e de todo amor e carinho que recebia. Tudo isso era minha rotina e, modéstia a parte, eu era belíssima, tinha vários atributos. Assim que me viam, era impossível não notar o trabalho primoroso em minha face. Muitos atribuem ao meu velho amigo Aleijadinho, mas somente eu sei a verdade e talvez um dia eu conte para vocês. Mas como não se vive só de um rostinho bonito, meu interior também arrancava suspiros dos meus admiradores, principalmente quando viam as pinturas do mestre Ataíde que me transbordavam de cor e luz.


Engraçado como é o tempo, não é mesmo? Acho que já disse isso ou posso estar me confundindo, peço desculpas, mas na minha idade isso é comum. Gosto de pensar nos meus anos de vida como uma espécie de ironia do destino. O tempo me deu a chance de ser conhecida e famosa, me fez presenciar momentos únicos, incontáveis chegadas e saídas, dias ensolarados e chuvas intensas. Tive a honra de presenciar choros de todos os tipos, de bebês que foram batizados até os sins emocionados no meu altar.


Por falar nisso, outro dia me senti angustiada ao lembrar da dona Dó. Tive muita saudade das suas visitas, pois sinto por ela um carinho quase que materno. Me lembro de quando a conheci, uma linda garotinha de nove anos. Desde então, não nos separamos mais. E lá se vão 82 anos de amizade e zelo. Ouvi dizer que ela sempre fala sobre mim e aguarda ansiosa, assim como eu, o nosso reencontro. Tudo isso é um grande drama: como podemos morar tão perto e estarmos tão distantes? A vida prega muitas peças.


Por falar em minhas emoções, ultimamente estou sempre com lágrimas nos olhos, triste e abatida. Por isso peço socorro, suplico para que tenham por mim a mesma dedicação que tive por vocês durante toda a minha vida. Acho que me exaltei, não é do meu feitio, porém toda essa solidão tem me abalado as estruturas. Agradeço por você ter ouvido meu desabafo, pois de alguma forma isso me alivia. Gostei muito de poder conversar com alguém que se importa verdadeiramente comigo. Quem iria gostar dessa conversa é meu velho amigo chafariz que, infelizmente, hoje está respirando por aparelhos. Quando ele estava bem de saúde, adorava me contar as histórias que presenciava. Ele era um tagarela e não sabia guardar segredo. Me contava tudo que ouvia no meu adro, sabia de todos os namoros entre os alunos do nosso vizinho, o Colégio Arquidiocesano. Mas como sou um túmulo, eu não conto pra ninguém.


E por falar em túmulo, por favor, cuidem do meu cemitério. Pessoas importantes para mim estão enterradas aqui. Pessoas com histórias incríveis, que foram e sempre serão o amor da vida de alguém. Assim como a minha comunidade que será, pra sempre, o meu eterno amor.






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